A água, o fogo, a terra e o ar pensaram em deixar uma recordação que perpetuasse através das idades a felicidade de seu encontro. Resolveram criar alguma coisa especial que, composta de fragmentos de cada um deles harmonicamente combinados, fosse também a expressão de suas diferenças e independência, e servisse de símbolo e exemplo para o homem. Eu porei as melhores forças de minhas entranhas - disse a terra - e alimentarei suas raízes. Eu porei as melhores linfas de meus seios - disse a água - e farei crescer sua haste. Eu porei minhas melhores brisas - disse o ar - e tonificarei a planta. Eu porei todo o meu calor - disse o fogo - para dar às suas corolas as mais formosas cores. Fibra sobre fibra foram construídas as raízes, a haste, as folhas e as flores. O sol abençoou-a e a planta deu entrada na flora regional, saudada como rainha. Quando os quatro elementos se separaram, a Flor de Lótus brilhava no lago em sua beleza imaculada, e servia para o homem como símbolo da pureza e perfeição humana. Tal como a flor do lótus cresce da escuridão do lodo para a superfície da água, abrindo suas flores somente após ter-se erguido além da superfície, ficando imaculada de ambos, terra e água, que a nutriram - do mesmo modo a mente, nascida no corpo humano, expande suas verdadeiras qualidades (pétalas) após ter-se erguido dos fluidos turvos da paixão e da ignorância, e transforma o poder tenebroso da profundidade no puro néctar radiante da consciência Iluminada. Se o impulso para a luz não estivesse adormecido na semente profundamente escondida na escuridão da terra, o lótus não poderia se voltar em direção à luz. Se o impulso para uma maior consciência e conhecimento não estivesse adormecido mesmo no estado da mais profunda ignorância um Iluminado nunca poderia se erguer da escuridão.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O encanto dos Orixás


Quando atinge grau elevado de complexidade, toda cultura encontra sua expressão artística, literária e espiritual. Mas ao criar uma religião a partir de uma experiência profunda do Mistério do mundo, ela alcança sua maturidade e aponta para valores universais. É o que representa a Umbanda, religião, nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, em 1908, bebendo das matrizes da mais genuína brasilidade, feita de europeus, de africanos e de indígenas. Num contexto de desamparo social, com milhares de pessoas desenraizadas, vindas da selva e dos grotões do Brasil profundo, desempregadas, doentes pela insalubridade notória do Rio nos inícios do século XX, irrompeu uma fortíssima experiência espiritual.
O interiorano Zélio Moraes atesta a comunicação da Divindade sob a figura do Caboclo das Sete Encruzilhadas da tradição indígena e do Preto Velho da dos escravos. Essa revelação tem como destinatários primordiais os humildes e destituídos de todo apoio material e espiritual. Ela quer reforçar neles a percepção da profunda igualdade entre todos, homens e mulheres, se propõe potenciar a caridade e o amor fraterno, mitigar as injustiças, consolar os aflitos e reintegrar o ser humano na natureza sob a égide do Evangelho e da figura sagrada do Divino Mestre Jesus.
O nome Umbanda é carregado de significação. É composto de OM (o som originário do universo nas tradições orientais) e de BANDHA (movimento incessante da força divina). Sincretiza de forma criativa elementos das várias tradições religiosas de nosso país criando um sistema coerente. Privilegia as tradições do Candomblé da Bahia por serem as mais populares e próximas aos seres humanos em suas necessidades. Mas não as considera como entidades, apenas como forças ou espíritos puros que através dos Guias espirituais se acercam das pessoas para ajudá-las. Os Orixás, a Mata Virgem, o Rompe-Mato, o Sete Flechas, a Cachoeira, a Jurema e os Caboclos representam facetas arquetípicas da Divindade. Elas não multiplicam Deus num falso panteísmo, mas concretizam, sob os mais diversos nomes, o único e mesmo Deus. Este se sacramentaliza nos elementos da natureza como nas montanhas, nas cachoeiras, nas matas, no mar, no fogo e nas tempestades. Ao confrontar-se com estas realidades, o fiel entra em comunhão com Deus.
A Umbanda é uma religião profundamente ecológica. Devolve ao ser humano o sentido da reverência face às energias cósmicas. Renuncia aos sacrifícios de animais para restringir-se somente às flores e à luz, realidades sutis e espirituais.
Há um diplomata brasileiro, Flávio Perri, que serviu em embaixadas importantes como Paris, Roma, Genebra e Nova York, que se deixou encantar pela religião da Umbanda. Com recursos das ciências comparadas das religiões e dos vários métodos hermenêuticos, elaborou perspicazes reflexões que levam exatamente este título: O Encanto dos Orixás, desvendando-nos a riqueza espiritual da Umbanda. Permeia seu trabalho com poemas próprios de fina percepção espiritual. Ele se inscreve no gênero dos poetas-pensadores e místicos como Álvaro Campos (Fernando Pessoa), Murilo Mendes, T.S. Elliot e o sufi Rumi. Mesmo sob o encanto, seu estilo é contido, sem qualquer exaltação, pois é esse rigor que a natureza do espiritual exige.
Além disso, ajuda a desmontar preconceitos que cercam a Umbanda, por causa de suas origens nos pobres da cultura popular, espontaneamente sincréticos. Que eles tenham produzido significativa espiritualidade e criado uma religião cujos meios de expressão são puros e singelos revela quão profunda e rica é a cultura desses humilhados e ofendidos, nossos irmãos e irmãs. Como se dizia nos primórdios do Cristianismo que, em sua origem, também era uma religião de escravos e de marginalizados, “os pobres são nossos mestres, os humildes, nossos doutores”.
Talvez algum leitor/a estranhe que um teólogo como eu diga tudo isso que escrevi. Apenas respondo: um teólogo que não consegue ver Deus para além dos limites de sua religião ou igreja não é um bom teólogo. É antes um erudito de doutrinas. Perde a ocasião de se encontrar com Deus que se comunica por outros caminhos e que fala por diferentes mensageiros, seus verdadeiros anjos. Deus desborda de nossas cabeças e dogmas
(autor: Leonardo Boff)

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